sexta-feira, 11 de agosto de 2017

Elas fugiram da Coreia do Norte. Histórias de quem não pode, nem quer, regressar

Cátia Bruno 10 Agosto 2017170










Lee fugiu para ver como era a vida na China e nunca mais voltou. Park conseguiu sair duas vezes do país de Kim Jong-un onde esteve num campo de trabalhos forçados. Falámos com elas.

Jihyun Park saiu da Coreia do Norte há 18 anos, mas as quase duas décadas de distância não lhe apagaram um último arrependimento. “Não me despedi do meu pai, porque pensava que ia poder regressar. A minha última memória dele é vê-lo sentado na sala, sozinho.” Park tinha 30 anos e tomou a decisão de abandonar o único país que conhecia por pressão do próprio pai, um motorista estatal. O objetivo era o de fugir com o irmão mais novo, que tinha desertado do Exército. Park e a família não tinham completa noção do que lhes poderia acontecer, mas não quiseram arriscar. Foi assim que os dois irmãos partiram para o desconhecido.

Foi o início da viagem de uma vida, que levaria Park à China e por fim ao Reino Unido, país com uma das maiores comunidades de norte-coreanos na Europa (cerca de 600). Agora, com 49 anos, a norte-coreana conta ao Observador a história da sua vida fora da Coreia do Norte num tom calmo e distante. Na fronteira nordeste do país, um traficante separou-a do irmão, que nunca mais viu, e vendeu-a por cinco mil yuan (cerca de 600 euros) a um marido chinês. Seguiram-se anos a ser controlada pela família do marido: “Na minha aldeia havia outras quatro mulheres norte-coreanas, mas nunca pude conhecê-las”, recorda Jihyun. “Costumava cruzar-me com uma delas na rua, mas não falávamos. Tínhamos medo. Só trocávamos olhares.”

Ao fim de seis anos engravidou, mas, ao contrário do que o marido queria, não abortou. Durante meses escondeu a gravidez e acabou por fazer o parto sozinha. Depois, temendo que a família do marido lhe tirasse o bebé, ganhou coragem e fugiu com ele para a cidade mais próxima, onde acabou a sustentar-se vendendo vegetais no mercado. A odisseia na China terminaria de forma negra: denunciada por outros vendedores, acabou por ser deportada de volta para a Coreia do Norte. Miraculosamente, passou apenas dois meses num campo de trabalhos forçados. Uma lesão grave numa das pernas foi o preço alto a pagar pela liberdade: “O diretor do campo disse-me ‘não podes morrer aqui’, e libertou-me. Estávamos em 2004, um ano em que morreu muita gente nos campos norte-coreanos e as autoridades não queriam arriscar ter mais pessoas a morrer a seu cargo”, alvitra Jihyun.

Jihyun Park, 49 anos, vive atualmente em Bury, perto de Manchester 
Fugiu novamente para a China com o objetivo de recuperar o filho. Foi mais fácil do que Park pensava, uma vez que a família do pai estava pouco ou nada interessada em ficar com a criança. E em 2008 consegue finalmente, com a ajuda das Nações Unidas no terreno, obter asilo na embaixada do Reino Unido na China. Foi assim que finalmente encontrou descanso em Bury, uma vila perto de Manchester. “Sou uma testemunha viva do que se passa na Coreia do Norte e na China. Os media focam-se muito nas questões nucleares e pouco nas questões humanas. Nós, norte-coreanos, somos humanos. Não vivemos noutro planeta”, diz Park em inglês, mas com um sotaque ainda carregado. A sua história é tão impressionante que parece ficção, mas as marcas que a coreana traz no corpo são bem reais. São fruto da tortura que sofreu no campo nos arredores de Chongjin e chegaram para convencer as autoridades britânicas de que tinham perante si uma verdadeira refugiada.

A história de Park é, apesar de tudo, comum. É mulher, como a grande maioria dos desertores da República Popular Democrática da Coreia do Norte — 70% de todos os norte-coreanos que vivem atualmente na Coreia do Sul são mulheres, por exemplo. É o resultado de um sistema onde os homens são forçados a ter um trabalho fixo e controlado pelo Estado, enquanto as mulheres se limitam a trabalhos informais como a venda no mercado. Na Coreia do Norte, fugir é mais fácil para elas do que para eles. “Basta ver que no Exército cerca de 80% dos membros são homens”, ilustra Park.

O timing em que esta norte-coreana fugiu também coincide com o do grande êxodo de população do país, em finais da década de 90 e inícios dos anos 2000. Até 1998, menos de mil norte-coreanos tinham dado o salto para o país vizinho da Coreia do Sul. “Era um número minúsculo, se considerarmos que, enquanto o muro de Berlim esteve de pé, 21 mil alemães orientais fugiram, em média, para o Ocidente, todos os anos”, escreve a jornalista norte-americana Barbara Demick no seu livro “A Longa Noite de um Povo – A Vida na Coreia do Norte” (ed. Temas e Debates).

A grande fome que assolou o país no final da década de 90 inverteria por completo a situação, com o número de desertores a subir, motivados não por questões políticas, mas por sérias dificuldades económicas. Com o aumento do fluxo de saídas, surgiram as redes organizadas de traficantes que elevaram ainda mais os números. Segundo dados de um relatório do congresso americanoentre os anos 2007 e 2011 a média de norte-coreanos que chegaram por ano à Coreia do Sul foi de 2678. Nos anos seguintes, desceria 45%, muito em parte pelo reforço da vigilância na fronteira nordeste da Coreia do Norte, local por onde a grande maioria dos refugiados foge, seguindo depois para a China e daí para a Coreia do Sul.

Movidos pela fome, pelo medo… e pela curiosidade

A Coreia do Sul soa para muitos como terra prometida. Afinal de contas, o governo sul-coreano considera como seus cidadãos todos os que nasceram na península e dá ainda três meses de formação e uma bolsa aos norte-coreanos que alcancem o país. Aos que têm a sorte de conseguir lá chegar.

Os números são difíceis de verificar, mas várias ONG estimam que pelo menos 100 mil norte-coreanos vivem atualmente na China, na sua maioria mulheres sujeitas a tráfico sexual ou casadas à força. Os problemas demográficos chineses, alimentados pela política restritiva do “filho único”, levaram a uma disparidade homens/mulheres que chega a rácios de 14 para 1 em algumas zonas rurais da China. Assim sendo, muitos homens disponibilizam-se para pagar por uma noiva e os traficantes usam a situação a seu favor, trazendo mulheres da Coreia do Norte e vendendo-as a estes homens.

Não há números oficiais, o que torna difícil avaliar a evolução da situação, mas a opinião de quem está no terreno é de que a situação já foi pior. “Pelo que vejo, há menos refugiados a ir para a China e a ficar lá”, garante ao Observador Dan Chung, responsável da organização cristã Crossing Borders, que ajuda norte-coreanos na China. “Isto acontece por três razões: em primeiro lugar, a chamada rede subterrânea cresceu e melhorou; em segundo, a Coreia do Norte fortaleceu a segurança na fronteira e, por fim, a situação alimentar melhorou. Não há mais comida, mas a distribuição está melhor”, explica Chung.

“Uma pessoa que foge da Coreia do Norte pode ser executada… Por isso a maior motivação para sair do país é só se alguém sentir que tem a sua vida em risco, seja por morrer de fome, seja por estar a ser perseguido.” A vida na China não é cheia de glamour para a maior parte destas mulheres; e, no entanto, muitas preferem-na e não concebem a ideia de regressarem ao seu país. “Elas preferem ser pobres na China do que na Coreia do Norte. A situação é má a esse ponto”, ilustra Chang.

Hyeonseo Lee concorda. “Só os loucos querem regressar”, diz a desertora tornada autora, em entrevista ao Observador, a partir de Seul. Em 2015, o seu livro de memórias “A Mulher com Sete Nomes” (ed. Planeta) foi publicado, tornando-se rapidamente um bestseller. A sua participação nas TED Talks foi vista por mais de 13 milhões de pessoas.

No livro, Lee conta como conseguiu fugir do homem a que foi vendida na China, bem como do bordel aonde foi parar e até de um gangue organizado. “Alguns leitores americanos contactavam-me e diziam ‘és como um gato, tens sete vidas’! Nós não temos essa expressão na língua coreana, não a conhecia… Tive de a googlar. E sim, sinto-me muito sortuda quando comparada com outros desertores norte-coreanos”, confessa. À semelhança de Jihyun Park, Lee também sente que tem de contar a sua história: “Talvez Deus me tenha dado uma missão, a de falar em nome dos desertores”.


Há 30 anos, enquanto crescia na Coreia do Norte, estava longe de adivinhar essa missão. Filha de um militar, pertencente a uma família de classe alta, Hyeonseo Lee nunca sentiu de perto a fome, mas esteve em contacto com muitas das outras realidades descritas pelos desertores norte-coreanos. “Até ter visto pessoas mortas nas ruas, no final dos anos 90, pensava que o meu país era o melhor do mundo. Já tinha visto execuções em público, tinha sabido de famílias inteiras que desapareciam, mas achava que era normal.”

Mas, mesmo dentro da normalidade, a adolescente Lee fervia de curiosidade. Em casa, via canais de televisão chineses clandestinos, às escondidas, fascinada: “A moda deles era muito melhor. Os cabelos pintados, as calças de ganga, os brincos…”. Na rua, Heyonseo observava ao longe as luzes e néons brilhantes da cidade chinesa de Changbai, visível da fronteira com a sua cidade Hyesan. Aos 17 anos, e com a ajuda de alguns guardas da fronteira — que conhecia devido aos bons relacionamentos da sua família —, Lee atravessou o rio Yalu no pico do inverno, quando este estava gelado. O objetivo era o de chegar a Changbai. “Só queria ver a China com os meus próprios olhos e não pela televisão”, confessa. Lee não imaginava que nunca mais regressaria ao seu país.

A vida do lado de lá da fronteira

As sete vidas de Lee na China e o seu conhecimento da língua fizeram com que, uma vez apanhada pelas autoridades, fosse tomada por chinesa e evitasse a deportação. Já Park, como tantos outros, não teve a mesma sorte. Ao todo, a República Popular da China deporta cerca de cinco mil norte-coreanos por ano, de acordo com estimativas do ministério da Unificação sul-coreano.

Hyeonseo Lee, agora com 39 anos, vive em Seul

Muito embora seja signatária do Convenção de Refugiados de 1951 das Nações Unidas, a China considera os desertores norte-coreanos como puros migrantes económicos e dá primazia ao Protocolo de Cooperação Mútua para as zonas de fronteira assinado com a Coreia do Norte em 1986. Tal não tem impedido o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR) de avisar o governo chinês sobre o incumprimento dos tratados, como o fez António Guterres quando visitou o país em 2006.

“Independentemente do seu estatuto legal ou das suas intenções quando abandonam o seu país, os norte-coreanos podem ser considerados refugiados”, declarava nesse mesmo ano o International Crisis Group, num relatório onde citava o ACNUR. “Uma pessoa torna-se refugiado sur place devido às circunstâncias que ocorrem no seu país durante a sua ausência (…) ou ao resultado das suas próprias ações”, diz o organismo das Nações Unidas. Ainda esta terça-feira, a organização humanitária Human Rights Watch apelava ao executivo chinês para que não deportasse 15 norte-coreanos que estão detidos no país.

Na fronteira chinesa com a Coreia do Norte é possível ler avisos que dizem ser “proibido ajudar financeiramente, albergar ou auxiliar o estabelecimento de pessoas do país vizinho que tenham atravessado ilegalmente a fronteira” e várias ONGs dão conta das recompensas monetárias pagas aos denunciantes. É uma estratégia usada pela China, que teme ver um fluxo ainda maior de norte-coreanos a chegar ao seu país. “É exatamente como nos EUA”, explica Chung da Crossing Borders. “Há o discurso dos imigrantes que vêm tirar os trabalhos. E como a China se concentra muito no crescimento económico, tem receio de receber uma grande população de estrangeiros.”

Os norte-coreanos não se sentem bem-vindos na China e temem as deportações, razão pela qual a maior parte dos desertores opta por partir para a Coreia do Sul. Mas o El Dorado do Sul revela-se uma desilusão para muitos. “Eu pensava que éramos irmãos, mas estava errada. Eles sentem que somos um fardo, que têm de pagar mais impostos por nossa causa. E como temos ditadores loucos, eles assumem que somos todos loucos também”, desabafa Hyeonseo Lee. “Temos muita dificuldade em ajustarmo-nos, há muito preconceito. É por isso que há tanta gente a sofrer com problemas mentais.”

As estatísticas dão conta das grandes dificuldades que os norte-coreanos encontram na Coreia do Sul. A taxa de desemprego dos desertores é seis a sete vezes maior do que a média nacional e, segundo dados do ministério da Unificação, seis em cada dez consideram-se de classe baixa. Mais grave ainda, a taxa de suicídio entre desertores é muito mais elevada do que a média nacional: em 2015, chegou aos 14 %. Ao todo, um estudo de 2005 estima que um em cada três desertores revela sintomas de Stress Pós-Traumático.

Se isto os faz regressar de livre e espontânea vontade à Coreia do Norte ou não, é uma incógnita. O regime de Pyongyang, atento à situação, aproveita todos os desertores que alcança para efeitos de propaganda. Sucedem-se as conferências de imprensa onde os norte-coreanos rejeitam a vida no Sul, falando "num mundo merdoso sem amor" ou agradecendo a Kim Jong-un “a preocupação carinhosa”. Mas é impossível saber ao certo se estes ex-desertores regressaram por sua vontade ou se, por outro lado, foram pressionados por temer pela vida das suas famílias no país ou até mesmo por terem sido raptados.

Pequenas-grandes mentiras

É mais um dos aspetos relacionados com a Coreia do Norte sobre o qual não é possível ter certezas. Como todas as informações vindas de um país tão fechado, a verificação é praticamente impossível, deixando o resto do mundo à mercê de simples relatos. O mesmo acontece com as histórias dos desertores — são uma pequena janela para o mundo desconhecido da Coreia do Norte, mas até que ponto são absolutamente fiáveis?

A questão foi pela primeira vez levantada com o caso de Shin Dong-hyuk. Em 2015, o desertor alterou publicamente alguns pormenores da sua história de vida, que tinha sido contada no livro do jornalista Blaine Harden “Escape from Camp 14: One Man’s Remarkable Odyssey From North Korea to Freedom in the West” (sem edição em português), nomeadamente a identificação do campo de concentração onde tinha crescido. A correção surgiu depois de Pyongyang ter tornado público um vídeo onde aparecia o pai de Dong-hyuk, desmentindo-o nalguns pontos. O vídeo abalou a credibilidade do norte-coreano, que tinha inclusivamente servido como testemunha para um relatório das Nações Unidas sobre a Coreia do Norte. A ONU, no entanto, considerou que a correção parcial do testemunho de Dong-hyuk “não é significativa para o relatório, as conclusões ou as recomendações da comissão”.

Soldado na fronteira China-Coreia do Norte

As pequenas mentiras ou imprecisões encontradas nos relatos de desertores da Coreia do Norte podem ser explicadas por diversos motivos. Há os efeitos do trauma, que leva por vezes as vítimas a não serem totalmente coerentes nos seus relatos. Outros têm receio do impacto do seu relato nas famílias que ainda estão no país. E existe ainda aquilo que a dissidente e também autora de um livro de memórias Lucia Jang definiu como “a cultura de contar histórias” existente na Coreia do Norte, sobretudo sobre os feitos do Grande Líder, que não valoriza particularmente os factos.

“Muitas vezes vemos que as histórias deles não são completamente coerentes”, admite Chung ao Observador. “Mas isso é porque eles são sobreviventes. Sobreviveram à pior fome da História e fizeram tudo o que tinham de fazer para sobreviver. E alguns ainda o fazem, acrescentam alguns detalhes se sentirem que isso lhes pode trazer mais atenção ou dinheiro.” O responsável da Crossing Borders admite que este é um facto que perturba alguns dos seus colegas em várias ONG, mas Chung não se diz abalado: “Só me mostra que eles precisam ainda mais de ajuda, é uma coisa que me motiva”.

Mas podem estas imprecisões e exageros pôr em causa relatos inteiros de violações de direitos humanos? Para Blaine Harden, autor do livro "Escape from Camp 14", não. “É necessário algum ceticismo dos leitores que chegaram agora aos livros de memórias da Coreia do Norte. Mas, valha isto o que valha, eu acredito nestes livros. São consistentes com a recente investigação da ONU, que encontrou provas arrasadoras de crimes contra a Humanidade a serem cometidos na Coreia do Norte”, escreveu o jornalista.

O relatório do inquérito levado a cabo pelas Nações Unidas e publicado em 2014 concluiu que, ao todo, 1 em cada 185 norte-coreanos está detido num campo de concentração e que, numa população com 25 milhões, 24 não têm efetivamente liberdade de movimentos. Quanto à fome de inícios dos anos 2000, a ONU conclui que 5% da população terá morrido nesse período por falta de alimentos. Em novembro de 2014, depois de apresentado o relatório, os Estados-membros votaram (111 votos a favor, 19 contra e 55 abstenções) uma recomendação ao Conselho de Segurança para que reportasse a situação na Coreia do Norte ao Tribunal Penal Internacional por crimes contra a Humanidade.

Dois mundos ainda distantes

Numa altura em que a Coreia do Norte aparece frequentemente nas notícias, muitos desertores, como Park, pensam que é mais importante do que nunca dar a conhecer a situação dentro do país. “Temos o lado político e o lado dos desertores. Por um lado há as sanções, mas por outro nós podemos dar a conhecer aos norte-coreanos o mundo exterior”, declara Jihyun Park.

Algumas organizações, como os Combatentes por uma Coreia do Norte Livre, liderada pelo desertor Park Sang-hak, organizam ações para levar da Coreia do Sul para a do Norte material como DVDs, rádios, pens USB e folhetos de propaganda, para que os norte-coreanos possam ter contacto com informação vinda de fora. Na zona de fronteira com a China, o contrabando de materiais é ainda mais fácil, como conta Demick no seu livro: “As mercadorias chinesas entravam na Coreia do Norte — não só comida e vestuário, mas também livros, rádios, revistas e até Bíblias, que eram ilegais. Os DVD prensados pelas fábricas de cópias ilegais chinesas eram pequenos e baratos. Um contrabandista podia transportar até mil DVD numa pequena arca, com uma camada de cigarros em cima como suborno para os guardas fronteiriços. (…) Os mais vendidos eram Titanic, Con Air e A Testemunha. Ainda mais populares eram os filmes e as novelas melodramáticas e melosas sul-coreanas”.


Os desertores podem não concordar sobre qual a melhor forma de a comunidade internacional lidar com o regime norte-coreano — Park, por exemplo, é algo crítica da retórica dura de Donald Trump, ao contrário de Lee —, mas não duvidam de que esta estratégia de aproximação do mundo exterior aos norte-coreanos pode ser vencedora. “De 1998 para 2004 notei muitas diferenças na Coreia do Norte”, ilustra Park, comparando o ano em que abandonou o país pela primeira vez e a altura em que regressou por deportação. “Esta nova geração tem mais noção do mundo exterior e com a mudança de geração talvez o regime também mude.” Lee, por seu lado, crê que é um grande desafio e que levará o seu tempo, mas não tem dúvidas em afirmar que Kim Jong-un será “o último ditador do país”.

O contacto com música ou séries estrangeiras dificilmente levará a um aumento da consciência política, como alertou a professora de Estudos Coreanos Kim Sung-kyung num artigo do jornal "Ther Guardian", mas pode levantar algumas questões. Há relatos de norte-coreanos que se disseram impressionados com os folhetos de propaganda vindos do Sul, não pelo seu conteúdo, mas pela qualidade do papel. Para Sung-kyung, o facto de estas experiências serem feitas em segredo pode ser igualmente relevante: “Pode trazer-lhes um sentimento de liberdade, que me parece mais relevante. Pode criar uma consciência dos pares. É uma forma de minar o regime no dia-a-dia”.

Para muitos desertores, a nova geração de norte-coreanos pode ser determinante

É também uma ponte entre dois mundos ainda tão distantes, que conhecem tão pouco um do outro. A Coreia do Norte é para muitos um lugar distante do qual se sabe pouco, caricaturado como um regime governado por loucos com uma população vítima de lavagem cerebral. As histórias dos desertores, mais ou menos fidedignas, ajudam a espalhar alguma luz sobre o ponto escuro no mapa que é a Coreia do Norte.

Do lado inverso, estes norte-coreanos vão navegando um mundo incerto e tão diferente daquele onde cresceram — mas para o qual não desejam regressar. “Só quando cheguei ao Reino Unido é que aprendi a canalizar as minhas emoções”, admite Park, recordando uma refeição em família, já em 2010, onde se sentiu pela primeira vez totalmente feliz. “Lembro-me também da primeira vez que cheguei ao país e me disseram ‘bem-vinda’. Chorei muito. ‘Bem-vinda’ é uma palavra muito importante, porque nunca tinha sentido isso antes.”

Jihyun Park refez a sua vida entretanto em Bury. Vive numa casa com terraço com o marido, um norte-coreano que trabalha num restaurante chinês, e com os filhos (teve outras duas crianças entretanto). Trabalha numa organização pelos direitos humanos na Coreia do Norte e dá aulas de línguas online. Tem uma vida aparentemente normal, organizada, centrada à volta da sua família. É nisso que ela se concentra agora, em olhar em frente. A única exceção é quando se deita: em sonhos, Park ainda vê o seu pai, sentado na sala de estar.

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