quinta-feira, 26 de abril de 2018

Hyeonseo Lee. Entrevista com a mulher que diz ter descoberto o calcanhar de Aquiles do regime norte-coreano

Coreia do Norte
Marta Leite Ferreira
25 Abril 2018


















Virou costas à Coreia do Norte sem saber que não voltaria. Caiu na prostituição antes de ir para a Coreia do Sul. Diz que as negociações com os EUA são uma fachada. E sabe como combater o regime.

Hyeonseo Lee tinha apenas 17 anos quando, maravilhada com as imagens que via nos canais chineses que apanhava ilegalmente na televisão, decidiu sair da Coreia do Norte “para ver as luzes com os próprios olhos”. 
Tinha vivido toda a vida esmagada pela propaganda da família Kim, que obrigava toda a gente a ter quadros com fotografias dos líderes pendurados nas paredes e que enviava homens de luvas brancas a todas as casas para averiguar se havia pó nas molduras. Hyeonseo Lee achava tudo normal: tinha visto a primeira execução pública aos sete anos, acreditava que a fome na Coreia do Norte era culpa dos americanos e pensava que o seu país era um paraíso. 
Quando virou costas a casa, com ajuda dos militares na fronteira que eram amigos da família, achava que regressaria ao fim de uma semana. 
Não saberia que, se voltasse, seria morta. 
Nem que ao fugir seria apanhada numa rede de escravatura e prostituição no norte da China.

Foi mais difícil morar na China do que atravessar a fronteira com a Coreia do Norte. 
Mas escapou a um casamento arranjado aos 19 anos, fugiu da rede de prostituição e conseguiu convencer os militares de que era realmente chinesa ao mudar de nome sete vezes, comprar documentos falsos e depois voar legalmente da China para a Coreia do Sul para pedir asilo. 
Com a liberdade finalmente na mão, Hyeonseo Lee percebeu que nunca se tinha sentido tão sozinha, por isso tentou resgatar a mãe e o irmão que tinham ficado em casa. 
Foi uma aventura dolorosa, que só teve um final feliz graças a “um anjo” australiano que pagou a fiança exigida pela família de Hyeonseo Lee e ainda libertou mais três pessoas.

Agora Hyeonseo Lee segue o exemplo desse seu “anjo” australiano. 
Com a organização não governamental que criou já garantiu a segurança de várias mulheres e está neste momento a organizar um esquema para pôr fim ao sistema de Kim Jong-un. 
É que Hyeonseo Lee apanhou o calcanhar de Aquiles do regime ditatorial norte-coreano: se o povo tiver mais dinheiro e mais conhecimentos sobre o exterior, o sistema vai cair e a ativista norte-coreana poderá finalmente regressar a casa.

No entanto, sobre as últimas aproximações entre as duas Coreias e entre os Estado Unidos e a Coreia do Norte, Hyeonseo Lee diz-se pouco otimista e acha que é tudo uma estratégia de Kim Jong-un para ganhar tempo e aumentar ainda mais o poder nuclear que tem vindo a acumular. 
É tudo isto que conta em entrevista ao Observador durante a cimeira National Geographic em Lisboa.

Qual é a sua opinião sobre as negociações entre os Estados Unidos e a Coreia do Norte?
Acho que, nos Estados Unidos da América até mesmo o próprio presidente Donald Trump foi apanhado de surpresa ou até chocado com a oferta do regime de Kim Jong-un para esta cimeira. 
Ninguém acreditava realmente que um ditador aceitaria uma conversa com uma potência como os Estados Unidos. 
E ele não se limitou a aceitar uma conversação, ofereceu uma cimeira com planos concretos muito cedo depois da proposta norte-americana. 
Isto aconteceu de forma completamente inesperada e parece-me que muitas pessoas no mundo estão otimistas em relação a este assunto.

A Hyeonseo não está?
Não. 
Compreendo que as pessoas tenham esperança de que esta cimeira traga grandes mudanças ou até mesmo unificações, mas para mim, enquanto desertora — e depois de conversar com outros desertores com quem mantenho contacto porque também vivem na Coreia do Sul — nada disto vai funcionar. 
Nós conhecemos bem a natureza daquele regime. 
Não estou de todo otimista com estas negociações e certamente sinto uma certa ansiedade e até admito estar um pouco assustada com o que é que isto vai dar. 
Não acho que Donald Trump e Kim Jong-un sejam capazes de falar sobre as coisas certas. E se eles não conseguirem entrar em acordo os dois, o que virá a seguir?

Mas não é essencial investir na desnuclearização da Coreia do Norte?
O problema é a natureza daquele regime: para criar uma potência nuclear, o regime investiu o mais que pode nesse plano nas últimas três décadas. 
Houve tantas pessoas que foram espezinhadas até à morte porque eles não querem suportar essas pessoas, mas sim investir na força nuclear que têm acumulado. 
Claro que receberam sanções do exterior ao longo do tempo, mas ainda assim tiveram sucesso em talvez 90% desse plano. 
E depois eles mentem e dizem que a desnuclearização está em cima da mesa, quando acredito que não está e devem estar a fazer piadas sobre nós por acreditarmos nisso. 
O que vejo é o objetivo da Coreia do Norte a tornar-se realidade: não é a desnuclearização, é mentir e trapacear as pessoas.



















Vista para Season-dong. Estes são autocarros usados pelos vendedores do mercado que querem ir para Sunan ou Ryongsung. A viagem custa 4000 wons (4 euros). 

Qual é o plano de Kim Jong-un, então?
Ganhar tempo. 
O plano de Kim Jong-un é ganhar tempo para desenvolver a força nuclear ainda mais e com sucesso. 
Esse é provavelmente o principal objetivo que a Coreia do Norte delineou para abrir canais de comunicação com os Estados Unidos e com a Coreia do Sul, embora eu possa identificar um motivo mais prático ainda: as sanções. 
Desde que os Estados Unidos anunciaram mais sanções para a Coreia do Norte, o que aconteceu no final do ano passado, e como a China também esteve envolvida, isso teve um grande impacto na economia norte-coreana, que quase parou. 
E isso é um grande problema para o nosso ditador, porque assim não consegue produzir as grandes quantidades de dinheiro de que precisa. 
Foi por isso que foi à China.

E acha que Trump não vai exigir provas concretas?
Bem, certamente a administração Trump não é igual aos outros governos que estiveram à frente dos Estados Unidos. 
Não penso que o presidente norte-americano se vá deixar levar pelo regime da Coreia do Norte: já tiveram muitos exemplos no passado, portanto conhecem bem o modus operandi deste ditador. 
Como a América disse que não removeria as sanções até que a Coreia do Norte travasse os investimentos que está a fazer em armas nucleares, penso que nesse sentido podemos estar contentes sobre as políticas instituídas por Trump para lidar com Kim Jong-un. 
Só que não chega. 
Há de chegar o dia, mas não será desta vez.

O que é preciso fazer para esse dia chegar?
O dia em que o regime da família Kim vai cair há-de chegar, mas não podemos ficar à espera dele. 
Acho essencial que, para que isso aconteça, os norte-coreanos se apercebam da raridade que a Coreia do Norte é. 
Isso já começou a acontecer, mas ainda é uma minoria a população que já reconhece que o país onde está não é o paraíso que lhe vendem. 
Nem toda a gente está na posse de todos os factos e aqueles que os conhecem não os podem dizer, quanto mais discutir em público sob pena de o regime lhes cair em cima e colocá-los nas prisões políticas ou atirá-los para execuções públicas. 
Mas quando o dia chegar, será por um motivo.

Qual?
Dinheiro. 
Vai ser o ponto fraco do regime norte-coreano: se as pessoas tiverem mais dinheiro e souberem mais sobre o capitalismo, o regime deixa de conseguir controlá-las. 
É próprio da natureza humana: quando as pessoas conhecem o poder do dinheiro deixam de ser fiéis ao governo. 
É por isto que estão a fazer o melhor que conseguirem para restringir as pessoas em todos os campos que puderem. 
Mas, à medida que o tempo passa e as pessoas ficam mais conscientes, vão necessariamente saber mais sobre o valor do dinheiro e acho que, por essa altura, a família Kim não será capaz de manter o poder que tem tido. 
A sociedade norte-coreana vai colapsar.

Está a ser feito o suficiente para que isso venha a acontecer?
Já há várias organizações independentes que estão a fazer um bom trabalho ao enviar informação para dentro da Coreia do Norte, partilhando com o povo norte-coreano o que é a realidade fora dali. 
Isso um dia trará frutos. 
Quanto a organizações maiores, como por exemplo as Nações Unidas, julgo que tem havido um progresso nos últimos anos. 
O conselho de segurança, por exemplo, nunca se tinha concentrado no problema dos direitos humanos porque preferiu sempre debruçar-se sobre os problemas políticos, mas em 2014 finalmente focou-se nos direitos humanos que estavam a ser violados na Coreia do Norte. 
Agora mesmo fizemos um relatório para as Nações Unidas que já foi publicado e que permite colocar Kim Jong-un ou militares ao serviço dele em tribunais criminais caso viajem para fora. 
Eu sei que isso não é realmente efetivo, porque a verdade é que eles não viajam muito para o Ocidente, mas ainda assim isso serve para consciencializar sobre o que está a acontecer na Coreia do Norte. 
E isso chateia muito o regime no país. 
Estou muito agradecida a tudo o que a América e outros países têm feito sobre os direitos humanos que são violados na Coreia do Norte. 
O problema é que esta questão dos direitos humanos nem sempre é uma prioridade para os outros países, porque há outros lugares em sofrimento, como a Síria. 
Espero que a minha luta continue até que todo o mundo preste atenção ao que se passa com aquele regime. 
Ainda assim, estamos muito longe de conseguir a liberdade da Coreia do Norte. 
Acho que a conseguiríamos se a península se unificasse.

Mas não acredita que a aproximação entre as duas Coreias possa resultar na unificação.
Não, porque acho que o esquema é o mesmo do que o estabelecido por Kim Jong-un entre a Coreia do Norte e os Estados Unidos. 
É uma manobra de distração. 
Moon Jae-in, o presidente da Coreia do Sul, está muito otimista quanto à cimeira como se esse encontro pudesse resultar na unificação. 
Mas eu digo-lhe uma coisa: temos neste momento uma cortina de ilusão por cima destes três países. 
Nunca esta cimeira vai resultar em alguma coisa definitiva e positiva para a Coreia do Norte nem para a unificação da península. 
É simplesmente impossível.




















Este Arco do Triunfo foi erguido em honra à alegada libertação da Coreia do Norte das mãos dos japoneses por Kim Il Sung. Mas isso nunca aconteceu.

Entretanto está a criar uma organização não governamental para apoiar norte-coreanos. O que me pode dizer sobre ela?
Eu costumo dizer que quero usar essa organização não governamental para mudar a Coreia do Norte a partir de dentro. 
Eu apercebi-me de que nós, desertores, temos assumido um papel muito importante nestas questões políticas. 
Estamos não só a enviar dinheiro para a Coreia do Norte para os nossos familiares, mas também a introduzir informações vindas do exterior lá dentro. 
Informação vinda do exterior e dinheiro são precisamente as maiores ameaças possíveis para o regime norte-coreano, por isso o meu plano é criar um fluxo desses fatores para dentro da Coreia do Norte na esperança que um dia seja suficientes para derrubar o sistema. 
Cá fora, vou continuar a lutar contra aquela injustiça e a falar ao mundo sobre o que se passa na Coreia. 
Claro que há muita gente a saber o que se passa lá, mas quero é continuar a dizer a verdade e a ajudar as mulheres que são apanhadas em esquemas de prostituição quando fogem do país.

Saiu da Coreia do Norte com 17 anos. Como recorda a propaganda de Kim Jong-un quando era criança?
Bem, a Coreia do Norte é provavelmente o único país que atualmente só tem um canal de televisão. 
Temos uma rádio que só tem acesso à frequência do canal preparado pelo regime da família Kim e nada pode ser ajustado nessa rádio, nem sequer o volume! 
As pessoas desaparecem a meio da noite para as prisões políticas. 
Lembro-me de um amigo do meu pai ter dito na rua: “O regime da Coreia do Norte não é justo”. 
Foi tudo o que ele disse, mas no dia seguinte ele e a família tinham todos desaparecido. 
As pessoas são presas não por matarem outros, mas por desrespeitarem o líder. 
É muito assustador, mas o que nos diziam era que a vida na Coreia do Norte era um paraíso: diziam-nos que todos os problemas que tínhamos — as pessoas que morriam de fome ou das doenças que daí vinham — era tudo culpa dos americanos, que andavam a matar pessoas nas ruas no seu próprio país. 
Há aquela questão de não podermos sair do país, mas o mais chocante de que me recordo sobre a propaganda norte-coreana quando era criança são as execuções públicas.

Viu a primeira quando tinha 7 anos.
Sim. 
Nós crescemos com execuções públicas a acontecerem a toda a hora e eu não percebia porque é que até crianças pequenas tinham de ser levadas para esses eventos. 
Guardo ainda hoje na memória a imagem da primeira execução que vi: era um homem que tinha sido enforcado pelo pescoço com uma corda ao ser empurrado de uma ponte. 
Fiquei muito assustada. 
Mas não foi exatamente a morte daquele homem nem os tiroteios contra outras vítimas que me assustaram, até porque era demasiado nova para entender o que era a morte. 
Só me apercebi de que aquilo era uma coisa assustadora ao olhar para aquela multidão enorme que se juntou naquela ponte para ver o homem morrer. 
Havia tantas pessoas. 
Vi as caras delas: estavam aterrorizadas e não falavam. 
Estava um silêncio tão profundo que conseguia ouvir a respiração das pessoas ao meu lado. 
Aquele lugar estava tão calmo. 
Foi só à conta disso que enquanto criança pensei: “Isto deve ser uma coisa muito má”. 
E era exatamente isso que o regime queria introduzir nos jovens: o medo. 
Quando somos novos aprendemos que as execuções públicas são coisas muito assustadoras, porque isso recordava-nos de que não devíamos fazer nada que contrariasse o governo ou então teríamos o mesmo destino. 
Crescemos com esse medo dentro de nós e com um ódio gigantesco pelos americanos. 
É assim que a família Kim consegue controlar três gerações de pessoas até aos dias de hoje.

Mas se lhe foi ensinado que a Coreia era um paraíso, porque é que quis fugir?
Fui imprudente e ingénua, diria eu. 
Houve muita fome na Coreia do Norte entre meados dos anos 90 até aos primeiros tempos do ano 2000 e houve milhares de pessoas a morrer nessa altura, mas eu não conseguia imaginar que as pessoas do meu país estavam a sofrer nas ruas. 
Estava muito confusa. 
Vivia na fronteira da Coreia do Norte com a China e nessa altura era o único país que se podia comparar com o meu. 
Aliás, até nos ensinavam que a China era nosso amigo, mas como se nós fossemos um irmão mais velho. 
Tinha 17 anos e nessa época não havia muita gente com televisão em casa. 
Mas a minha família tinha televisão. 
Um dia descobri que conseguia apanhar canais chineses por causa da proximidade com a fronteira. 
Comecei a ver programas de televisão chineses em segredo à noite: fechava as janelas, punha lençóis para tapar a luz, punha o volume muito baixo e via. 
E isso transformou completamente a minha vida. 
Comecei a pensar que, se calhar, a Coreia do Norte não era o primeiro sítio do mundo. 
Foi assim que acidentalmente passei a fronteira para a China.

Acidentalmente!?
Havia um rio muito grande na fronteira que desaguava no mar e que estava congelado porque era inverno. 
O tempo lá é mesmo muito frio no inverno. 
Então decidi atravessar o rio de uma margem à outra quando percebi que estava basicamente transformado em gelo. 
Claro que havia guardas norte-coreanos a patrulhar a fronteira: passa uma equipa a cada doze ou quinze metros, já não me lembro muito bem. 
Estão todos armados e todos têm treino militar. 
Só que, como nós vivíamos na fronteira, a minha família e eu tínhamos muito boas relações com os militares. 
Considerava-os meus amigos, na verdade, por isso fui ter com eles. 
E eles não sabiam que eu estava a fugir porque nem eu mesma tinha noção de que era isso o que estava a acontecer: pensava que ia uma semana à China ver as luzes e regressava. 
Os militares ajudaram-me a atravessar a fronteira, portanto fi-lo com muita naturalidade. 
A maior parte das pessoas que passa da Coreia do Norte para a China pelo percurso que eu fiz tem de arriscar a vida para o fazer, seja porque o fazem durante o verão e são levadas pelo rio, porque são alvejadas pelos militares ou porque são mortas pelos cães. 
O meu caso foi de sorte.




















O homem à direita está a fazer o gesto típico da União de Crianças Coreanas. Significa "Hansang Junbi" ou "sempre preparado". É uma marca deixada pela União Soviética

Fugir foi fácil, mas a vida na China foi muito dura.
Sim. 
Os primeiros tempos são especialmente tensos porque as autoridades chinesas tentam identificar os norte-coreanos que chegam ao país e, se isso acontecer, deportam-nos como desertores. 
Isso acontece ainda hoje. 
Consegui manter-me anónima na China durante três anos até que alguém me denunciou e fui detida para interrogatório. 
Alguém tinha feito um relatório sobre mim onde dizia que era uma desertora norte-coreana, mas por essa altura já tinha aprendido mandarim muito bem e consegui responder até às perguntas mais difíceis e complexas. 
O polícia acabou por dizer que o relatório era falso, que era mesmo chinesa e libertou-me. Foi um verdadeiro milagre. 
Um amigo meu não teve a mesma sorte e foi enviado para a Coreia do Norte onde está preso num campo político. 
O único remédio que tive para me esconder na China e não ter o mesmo destino foi mudar de nome sete vezes. 
É uma longa história. 
Escapei a um casamento arranjado por um chulo quando tinha 19 anos, mas depois não tinha onde ficar nem o que comer. 
Por isso decidi arranjar um trabalho, que acabou por ser outro problema: prometeram-me que trabalharia na área da estética, mas acabei envolvida numa rede de prostituição. Finalmente consegui fugir outra vez: lembro-me de uma mulher me estar a explicar, com um ar muito assustado, como fazer massagens a um homem. 
No dia seguinte escapei. 
Nunca tinha ouvido falar de prostituição antes, nem sabia o que isso era porque na Coreia do Norte nem sequer há educação sexual. 
Acho que a minha vantagem em relação às outras mulheres é que penso muito rápido. 
São muitas as histórias de sofrimento que passei por lá, mas o problema é que a maior parte das pessoas que atravessa a fronteira para a China não tem ninguém à espera delas a não ser traficantes de seres humanos. 
É muito fácil cair no erro.

Quanto tempo passou até conseguir chegar à Coreia do Sul?
Fiquei onze anos na China e depois fui para a Coreia do Sul. 
Não é fácil fazê-lo. 
Os desertores costumam arriscar a vida para sair da Coreia do Norte para outros países, mesmo que seja a Tailândia, por exemplo. 
Eu voltei a ter muita sorte quando decidi finalmente fugir para a Coreia do Sul. 
Tinha arranjado um passaporte chinês e um cartão de identificação chinês que mandei fazer, em troca de dinheiro, com informações falsas. 
Arranjei um visto com esses documentos. 
Fui um dos poucos desertores que voou da China diretamente para a Coreia do Sul através do aeroporto para depois pedir asilo. 
Quando cheguei à Coreia do Sul, os serviços secretos a quem pedi ajuda nem queriam acreditar que era realmente uma desertora vinda da Coreia do Norte porque tinha documentos perfeitos.




















A praça Kim Il Sung ao pôr-do-sol.

Como foi a sua vida desde então?
Aprendi que a liberdade não vem de graça [“Freedomisn‘t for free“]. 
Assim que pude fui buscar a minha mãe e o meu irmão à Coreia do Norte. 
A minha mãe pediu a um médico que a declarasse a ela e ao meu irmão como mortos para o resto da minha família — os meus tios, irmãos da minha mãe — não sofressem represálias na Coreia do Norte. 
Estava à espera deles na fronteira, mas não nos pudemos sequer abraçar com receio que os militares reparassem nas nossas movimentações. 
Estivemos quase para ser apanhados já na China quando um polícia entrou num autocarro e nos começou a revistar. 
O meu irmão era o único homem no autocarro e, ainda por cima, ele e a minha mãe eram mais magros e mais claros do que os outros por causa da falta da comida. 
O polícia foi direito a nós e eu paralisei. 
Não sabia o que fazer. 
Até que tive uma ideia: quando o polícia se aproximou de nós levantei-me e comecei a tirar-lhe fotografias. 
Ele ficou tão atrapalhado! 
Disse: “A menina não sabe que não nos pode tirar fotografias numa situação destas?”. 
Fiz o sorriso mais inocente que consegui, mas ele estava tão atrapalhado que simplesmente saiu do autocarro e se foi embora. 
O pior ainda estava para vir, na verdade. 
De nada me valeu respirar de alívio.

O que aconteceu?
A minha mãe e o meu irmão foram mesmo presos por terem entrado ilegalmente na China. Andei longos meses a visitá-los na prisão e a tentar negociar com os guardas e com advogados uma forma de eles saírem dali, mas percebi que não tinha dinheiro para isso. Um dia, encontrei um verdadeiro “anjo”. 
Descobri que os “anjos” existem e andam ao nosso lado. 
Era um homem australiano que tinha estado na China em passeio e que conheci por acaso. Ele soube da minha história, pegou no cartão de crédito, foi levantar dinheiro e não só pagou a fiança exigida para a libertação da minha família como ainda libertou mais três pessoas. 
Depois disso perdi-lhe o rasto.

Nunca mais o encontrou?
Encontrei, graças a Deus. 
Foi em 2013, se não me engano. 
Ele viu uma conferência que dei no evento TED e contactou-me por e-mail. 
Reencontrei-me com ele em Sidney. 
Entretanto, a atitude dele inspirou-me. 
Desde que a minha vida estabilizou tenho trabalhado para libertar mulheres presas na China em redes de prostituição, escravatura e tráfico de seres humanos. 
Uma das mulheres que salvei tinha sido vendida a um homem para casamento. 
Depois de ter tido um bebé dele, o marido vendeu-a outro homem e ela voltou a engravidar. Consegui encontrá-la e salvá-la. 
Outra mulher consegui-a salvar depois de saber que ela se tinha tentado suicidar depois de se atirar de uma janela. 
Não conseguiu, mas a conversar comigo disse acreditar com todas as forças que iria acabar a vida na China. 
Resgatei-a e estão as duas na Coreia do Sul. 
É isto que vou continuar a fazer.

Antes destas conversações disse que “só um louco voltaria à Coreia do Norte”. Mantém essa opinião?
A minha maior esperança é que um dia possa regressar para o país onde está toda a minha família e todos os amigos que deixei para trás aos 17 anos quando fui para a China. Mas não consigo sequer ponderar um cenário em que um acordo entre as duas Coreias ou entre a Coreia do Norte e os Estados Unidos resulte numa possibilidade de o fazer neste momento. 
Seria um suicídio: se Kim Jong-un me apanhasse por lá seria com certeza raptada, presa num campo político ou morta de uma vez. 
Não posso regressar por mim mesma neste momento, mas quando as relações entre os dois países se tornarem mais saudáveis queria muito voltar à terra onde cresci. 
Vou ter de esperar até o regime colapsar totalmente. 
Acredito veementemente que vai acontecer no meu tempo e de alguma forma acredito que pode acontecer algures nos próximos dez anos. 
Parece que um regime desta natureza pode perdurar eternamente e que até mesmo uma década pode ser demasiado tempo, mas talvez tudo isto venha a acontecer de forma muito inesperada.

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