segunda-feira, 26 de dezembro de 2016

A bandeira foi arreada, mas não para todos

José Milhazes
25 Dezembro 2016

A 25 de dezembro de 1991, Mikhail Gorbatchov pôs um ponto final na história de uma das superpotências do séc. XX.
José Milhazes recorda o dia em que a foice e o martelo deram lugar à bandeira tricolor

A desintegração da União Soviética não ocorreu num dia, nem num ano, mas foi um processo longo, alimentado pela incapacidade do regime comunista resolver os problemas do país, pela luta pelo poder no seio da elite soviética. 
As forças externas ajudaram à queda, mas não tiveram papel decisivo.

“Queridos concidadãos! 
Compatriotas! 
Devido à situação criada devido à formação da Comunidade de Estados Independentes, eu ponho fim à minha atividade no cargo de Presidente da URSS”, declarou Mikhail Gorbatchov a 25 de dezembro de 1991, ao por um ponto final na história de uma das superpotências do século XX. 
Depois disso, a bandeira vermelha com a foice e martelo doirados, símbolo da União Soviética, foi substituída no Kremlin pela tricolor russa. 
Para uns, foi a maior catástrofe geopolítica do século XX mas, para outros, foi a libertação. É sempre assim quando se desfazem os impérios.

No entanto, é necessário frisar que o processo de desintegração do império soviético foi longo e acelerou-se quando Mikhail Gorbatchov lhe retirou um dos principais pilares: o medo (em algumas ocasiões, o terror).

Entre todos os males que vieram à tona durante a Perestroika, a época da libertação do jugo do medo, é de salientar o problema nacional, que tem as primeiras manifestações sanguinárias no conflito entre Arménia e Azerbaijão em torno de Nagorno-Karabach, iniciado em fevereiro de 1989. 
Depois, em abril do mesmo ano, tropas soviéticas esmagam manifestações de protesto em Tbilissi, capital da Geórgia, provocando dezenas de mortos e feridos. 
Em março do ano seguinte, o sangue volta a ser derramado em Vilnius, capital da Lituânia.

Mas o golpe mais forte na estrutura do Estado Soviético foi, sem dúvida, a proclamação da soberania da Federação da Rússia a 12 de junho de 1990 e a eleição, um ano depois, de Boris Ieltsin para o cargo de Presidente da Rússia. 
O facto de ele ter sido eleito em eleições livres e diretas deu-lhe, aos olhos da opinião pública, uma legitimidade maior do que a de Gorbatchov, que não se quis sujeitar a um escrutínio nacional.

A partir daí, tornou-se claro que era impossível a coexistência pacífica entre “dois ursos na mesma caverna” e, nesta guerra entre Gorbatchov e Ieltsin, este último soube apoiar-se na maioria dos dirigentes das restantes 14 repúblicas soviéticas, que sonhavam com a independência, embora nem todos tivessem coragem de o dizer publicamente. 
De que outra forma, por exemplo, é que Nussultan Nazarbaev ou Leonid Kravtchuk, na altura dirigentes dos partidos comunistas do Cazaquistão e Ucrânia, se poderiam tornar presidentes de Estados independentes?
O dirigente soviético ainda tentou salvar a situação através da realização de um referendo, a 19 de março, sobre a futura estrutura do país, mas com uma pergunta extremamente confusa e já desatualizada: “Consideram necessário a conservação da URSS enquanto federação renovada de repúblicas soberanas iguais, onde serão completamente garantidos os direitos e liberdades do homem de qualquer nacionalidade?”. 
É muito difícil, por exemplo, imaginar uma “federação de repúblicas soberanas”. 
Além disso, o plebiscito não foi realizado em seis das quinze repúblicas soviéticas.

Mas a estocada final no império soviético foi desferida a 19 de agosto de 1991, quando um grupo de comunistas ortodoxos tentaram afastar Mikhail Gorbatchov do poder, a pretexto de salvar a União Soviética. 
É verdade que conseguiram o seu primeiro intento, mas à custa da aceleração do processo de desintegração do país.



 
O Tratado de Belovejskaia, assinado a 8 de dezembro pelos dirigentes das três repúblicas eslavas da URSS – Bielorrússia, Rússia e Ucrânia –, apenas fixou no papel. 
Neste sentido, não se pode deixar de estar de acordo com Gorbatchov quando afirma: “A destruição da União Soviética foi realizada pelos assinantes do Tratado de Belovejskaia, levados por ambições pessoais e sede do poder. 
Isso diz respeito, antes de tudo, à direção da Rússia”.

“Essas pessoas, repito, as que destruíram o país, preocuparam-se apenas com o poder pessoal, corriam ansiosamente para ele. 
Eles não queriam apenas ser presidentes, mas que Gorbatchov não existisse. 
Eis os seus verdadeiros objetivos”, remata o último líder soviético.

Além do fator humano, não nos podemos esquecer de outros que igualmente contribuíram para o fim da super-potência soviética: a ineficácia económica, a militarização exagerada (40% do Orçamento soviético era gasto em despesas militares) e inadequada política externa (nomeadamente, intervenções em Angola, Etiópia, Afeganistão, etc.).
 

 Falsa mitologia

A atual propaganda do Kremlin tenta fazer crer que a URSS caiu, não tanto devido a fatores internos, mas graças a “ações externas”, leia-se, da CIA, Mossad, M15, Maçonaria, Vaticano, etc. 
Seria incorreto negar que esse processo decorreu sem a ajuda de “mãozinha alheia”, mas, considerar este fator como decisivo, significa passar um atestado de total incompetência aos dirigentes e ao regime soviéticos. 
E sendo os comunistas russos uns dos mais fervorosos defensores dessa tese, isso fica-lhes muito mal, pois ela vai contra a ideologia marxista-leninista, que vê nas massas o motor da História. 
O mesmo se pode dizer em relação ao papel de Mikhail Gorbatchov neste processo, quando é acusado de ter sido o “principal destruidor”, “agente estrangeiro”, etc.

Além disso, pobre em ideias, a atual ideologia oficial tenta reabilitar o que lhe interessa, tanto da história da União Soviética, como do Império Russo, mesmo que para isso seja preciso falsificar a História. 
Quando se trata da devolução das ilhas Curilhas ao Japão, os dirigentes russos apelam aos resultados da Segunda Guerra Mundial e aos documentos que então fixaram as fronteiras, pondo de lado qualquer outro acordo, mas os tratados assinados pela Rússia, como o Tratado de Budapeste de 1994, que garantia a integridade territorial da Ucrânia em troca da entrega das suas armas nucleares à Rússia, já não são de cumprimento obrigatório.

Ainda antes da intervenção militar russa na Síria, alguns políticos e historiadores do regime começaram a rever a história da ingerência militar soviética no Afeganistão em dezembro de 1989. 
Essa operação bélica deixou de chamar-se invasão de um país soberano para ser considerada “o primeiro combate contra o jihadismo islâmico!”. 
Como irão reagir a isto os defensores das Cruzadas medievais?
Outro dos mitos é a grande nostalgia pela União Soviética, que as sondagens refutam. Segundo um estudo da opinião pública do Levada-Tzentr, publicado a 5 de dezembro deste ano, é verdade que mais de metade dos inquiridos lamenta o fim da URSS (56%), mas também é de salientar que apenas 12% defendem o seu restabelecimento.

Além disso, os estudos mostram que o “grau de nostalgia” diminui com os anos: em 2001, a ideia da restauração era apoiada por 30% dos inquiridos. 
“As pessoas têm consciência de que o mundo mudou e que é impossível voltar ao passado”, constata Alexei Grajdankin, vice-director do Levada-Tzentr.
Porém, a atual política da direção russa é a principal garantia de que nem a URSS, nem outra sólida união, aparecerão no espaço pós-soviético. 
A Rússia, não sendo um exemplo de prosperidade económica, social e política, está longe de ser um polo de atração para os seus vizinhos. 
Pelo contrário, estes receiam cada vez mais a corte instalada no Kremlin de Moscovo.

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