Steve Hendrix
26 de Outubro de 2017, 23:21
Esteve quase a não levar a câmara.
A 22 de Novembro de 1963, o dia em que o nome de Abraham Zapruder iria para sempre ficar ligado a uma tragédia americana, o costureiro de Dallas que adorava fazer filmes caseiros tinha decidido deixar a sua Bell and Howell Zoomatic em casa.
Foi a sua assistente que o convenceu de que valia a pena registar em filme o desfile do Presidente John F. Kennedy pela Dealey Plaza.
Quatrocentos e oitenta e seis frames depois, Zapruder tinha não só registado a História, tinha-a feito.
O filme de 26 segundos que documenta o assassinato de Kennedy inaugurou a pré-história da era dos vídeos virais – cidadãos comuns a registarem acontecimentos extraordinários em vídeo.
As suas imagens de 8 mm começaram por ajudar os investigadores da Comissão Warren a concluir que Lee Harvey Oswald tinha agido sozinho.
Depois, dissecado e escrutinado até hoje, o filme de Zapruder tornou-se a base das suspeitas contra a explicação oficial, dando origem a uma espiral de teorias da conspiração que passaram a definir não só o acontecimento em si, mas também a própria era moderna.
“Sem o filme, creio que nunca se teria gerado tanta controvérsia sobre a Comissão Warren nem teríamos assistido a nada do que vimos nos últimos 50 anos”, afirma Josiah “Tink” Thompson, autor de “Six Seconds in Dallas” [livro que analisa o assassinato com base nas imagens de Zapruder, e que defende a existência de três atiradores].
Quando o relutante Zapruder subiu finalmente para um pilar de cimento a vinte metros de distância de Elm Street, estava inadvertidamente a colocar-se em posição privilegiada para ver o destino a acontecer.
“Um realizador de Hollywood não escolheria um sítio melhor”, diz Thompson.
“E quando a limusina está no ponto mais próximo da câmara, a cabeça de Kennedy explode.”
Na semana passada, o Presidente Donald Trump reiterou a promessa de autorizar a revelação dos últimos documentos secretos sobre o assassinato de JFK que ainda se encontram sob a alçada do Arquivo Nacional.
À medida que historiadores, jornalistas e público aguardam para começar a lê-los na quinta-feira, as memórias rapidamente retornam a essa silenciosa e trémula sequência, tão arrepiante quanto familiar: o descapotável que se aproxima, uma multidão prestes a perder a inocência, o Presidente agarrado à garganta, a mancha carmesim do frame 313 (que não foi mostrado ao público durante 12 anos), o gatinhar instintivo de Jacqueline Kennedy pela mala, a precipitação da caravana em direcção ao hospital, e uma América mudada para sempre.
“O trabalho dele foi realmente notável”, diz Thompson sobre o cineasta amador.
Um feito que Zapruder preferiria nunca ter alcançado.
O dono da empresa têxtil Jennifer Juniors, de 58 anos, que tinha emigrado para os Estados Unidos na adolescência, adorava os Kennedy.
Desceu do pilar, pousou a câmara e começou a gritar: “Mataram-no! Mataram-no!”
“Acho que ele lamentava muito ter sido a pessoa que filmou aquilo”, diz Alexandra Zapruder, neta de Abraham, que escreveu no ano passado “Twenty-Six Seconds”, a história pessoal do efeito que o filme teve na sua família.
“Não lhe trouxe nada senão desgostos.”
Segundo uma exaustiva linha temporal do JFK Lancer, site dedicado ao assassinato, no caos que se seguiu ao tiroteio Zapruder foi rapidamente levado por um agente dos serviços secretos a um laboratório da Kodak, onde o filme foi revelado na hora.
Zapruder entregou duas cópias às autoridades e ficou com o original e uma outra cópia. Três dias depois, tinha vendido o original e todos os direitos sobre o filme à revista “Life” por 150 mil dólares, tendo depois dado 25 mil dólares à viúva do polícia morto por Oswald na fuga.
A decisão de Zapruder desencadeou uma profusão de batalhas legais, cópias piratas, decisões judiciais, actas do Congresso, dúvidas de autenticidade e acusações de aproveitamento e infracções de direitos de autor que se prolongaram durante décadas. Investigadores, jornalistas e legiões de teóricos da conspiração fizeram dele o pedaço de filme provavelmente mais dissecado da História, fazendo surgir das suas sombras coloridas personagens como o Homem do Guarda-Chuva, o Homem do Cão Preto e outras figuras da intriga.
Para muitos estudiosos de assassinato, o maior impacto de Zapruder foi lançar a dúvida sobre a conclusão central da investigação do governo: a teoria do atirador solitário.
O aterrador clímax da sequência mostra uma pluma de sangue a irromper pela frente da cabeça de Kennedy.
Oswald disparou por trás.
Isso gerou discussões sobre espasmos neurológicos e sobre o “efeito jacto” que nunca desapareceram.
Para muitos, e porque a contradição nunca foi mencionada no relatório da Comissão Warren, a versão oficial está irremediavelmente em xeque.
“O clímax do filme não é o cenário que eles apresentaram”, acusa Thompson.
“Se não fosse o filme, as contradições lógicas da Comissão Warren não teriam sido expostas.”
Thompson, ex-professor de filosofia formado em Yale que trabalhou na principal investigação da “Life” sobre o assassinato, crê que ainda hoje o filme nos vai revelando fragmentos da verdade.
As versões digitalmente melhoradas abundam pela Internet e, quando combinado com dados acústicos, o filme de Zapruder ainda nos pode dar uma resposta definitiva, diz.
“O que estamos a perceber agora, 50 anos depois, é como o filme de Zapruder é tão bom a mostrar-nos o que aconteceu.
”Zapruder morreu em 1970, vítima de cancro.
As discussões sobre quem matou JFK e sobre quem controlava o filme do assassinato sobreviveram-lhe em muito.
Geraldo Rivera mostrou-o na televisão em 1975, incluindo o frame 313.
Oliver Stone levou-o ao grande ecrã em “JFK”, de 1991.
A revista “Life” vendeu os direitos do filme de volta à família Zapruder em 1975, pela quantia simbólica de um dólar, e em 1999 o governo federal ficou com o original como uma “prova de assassinato” oficial, pagando em compensação 16 milhões de dólares à família. Em 2000, os Zapruder doaram os direitos de autor e o arquivo familiar ao Sixth Floor Museum, situado no antigo Texas School Book Depository, o edifício de onde Oswald disparou.
Em suma, o breve e eterno encontro de Zapruder com a História produziu um artefacto mergulhado tanto em provas como em dúvidas, preservando de forma perfeita o caos a 18 frames por segundo.
“Corporiza todas as contradições irresolúveis”, diz Alexandra Zapruder.
“Não só as forenses e as balísticas, mas também as culturais, a nossa incapacidade para compreendermos o incompreensível.
Ӄ um filme onde nunca vamos ver um fundo negro.
Tradução de António Domingos
Exclusivo PÚBLICO/The Washington Post
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