OPINIÃO
Rui Tavares
21 de Março de 2018, 7:36
Haverá certamente muito mérito nas investigações jornalísticas que nos últimos dias vieram desvendar a pilhagem indiscriminada de dados pessoais nas redes sociais que permitiu às campanhas de Trump e do "Brexit" desmobilizar o voto adversário e ganhar a eleição nos EUA e o referendo no Reino Unido, respetivamente.
E haverá mérito também em debater quão decisiva foi essa vantagem.
Mas ao passo que a investigação sobre o tema é factual — e imprescindível, porque pode haver ilegalidades a descobrir —, o debate que se lhe segue será inevitavelmente subjetivo e por isso, na prática, fútil.
Por muito viciada que as campanhas tenham sido, os votos já ocorreram e as decisões já produziram efeitos.
Politicamente, é o presente e o futuro de Trump e do "Brexit" que mais nos devem interessar.
Ora, esta distinção é importante porque na mesma semana em que saíram estas revelações sobre as campanhas de Trump e do "Brexit" foram publicados também os princípios de acordo entre a UE e o Reino Unido para o "Brexit".
É possível até que as revelações sobre as campanhas passadas tenham ajudado a ocultar o que ficámos a saber sobre o futuro das relações euro-britânicas.
E isso seria uma pena.
O que ficámos a saber sobre o futuro é muito mais decisivo para se poder produzir um julgamento sobre o "Brexit".
Os leitores devem estar lembrados que uma das grandes armas que os defensores do "Brexit" alegavam deter era o poder de abandonar a mesa das negociações e sair da UE sem qualquer acordo.
O mesmo argumento foi muito utilizado, aliás, pelos vários defensores da saída do euro, aqui em Portugal e noutros países.
O raciocínio subjacente é que “mais vale nenhum acordo do que um mau acordo” ou, como se dizia nos círculos anti-euro, que “não se pode ir para uma negociação sem um plano B para abandonar as negociações”.
À primeira vista, parecem argumentos plausíveis, e assim convenceram muitas pessoas. Mas faltava um detalhe àquele raciocínio: o de saber se quem fazia a ameaça saía mais prejudicado, em caso de ter de a cumprir, do que aqueles a quem ameaçava com a saída das negociações.
É a essa questão que o documento com esboço do acordo UE-Reino Unido vem responder. O texto divulgado pela Comissão Europeia está sublinhado a três cores diferentes.
As partes onde há acordo definitivo estão coloridas a verde.
As partes sobre as quais há acordo substancial mas é preciso encontrar uma formulação final estão a amarelo.
E as partes sobre as quais ainda não há acordo estão a branco.
Lendo tudo, a conclusão é inevitável: o Reino Unido capitulou perante todas as condições que a UE tinha apresentado no seu mandato negocial inicial.
A única parte de alguma consequência que está ainda em branco corresponde à questão da Irlanda do Norte, onde o Reino Unido se compromete a encontrar uma solução criativa (até agora desconhecida) para evitar uma fronteira entre a Irlanda do Norte e a República da Irlanda.
Mas ao lado, a verde, está assinalado o mecanismo automático a que se recorrerá caso o Reino Unido não apresente nenhuma solução viável: a Irlanda do Norte ficará, para todos os efeitos práticos, no universo regulatório da UE.
A Irlanda, que ficou na UE, demonstrou ter muito mais poder neste diferendo do que o Reino Unido, que saiu.
Talvez os leitores se lembrem também que aqui há um ano alguns defensores do "Brexit" defendiam uma saída da UE abrupta, sem fase de transição na qual o Reino Unido estivesse sujeito às condições da UE sem nelas ter direito de voto.
Pois bem, que aconteceu entretanto?
Foi o próprio governo britânico que veio solicitar uma fase de transição em que fica tudo na mesma, com a diferença de que o país já não estará então à mesa das instituições europeias.
Dois anos depois do referendo, começamos a ter um panorama do "Brexit".
Por acaso ou talvez não, é um cenário de que os nossos eurofóbicos deixaram de falar e de gabar.
Pudera: o que o Reino Unido conseguiu foi continuar uns anos na UE, mas sem voto, e até correr o risco muito provável de passar uma parte do seu território para o mercado interno da UE.
A fase de transição durará até ao fim de 2020 — por acaso, o ponto a partir do qual as estimativas demográficas nos dizem que a população britânica passa a ter uma maioria estrutural pró-UE.
Partir o país e sujeitá-lo a regras exteriores: eis a grande recuperação de soberania que o "Brexit" garantiu para o Reino Unido.
Para os britânicos será tarde de mais para mudar de rumo.
Para todos os outros europeus continua a ser importante ver o que acontece quando os demagogos nos propõem trocar soberania partilhada, mas real no mundo de hoje, pelo canto da sereia de uma soberania isolacionista e puramente retórica.
Historiador
Sem comentários:
Enviar um comentário