OPINIÃO
Carlos Gaspar
10 de Maio de 2018, 6:48
A nova estratégia norte-americana deixou de ter como objectivo pôr em causa os regimes políticos da Coreia do Norte e do Irão: um acordo com Kim consolida o seu regime comunista e serve para demonstrar que Washington desistiu de minar a teocracia xiita, o que é um incentivo para uma nova negociação.
O Presidente dos Estados Unidos, no dia 8 de Maio, tomou duas decisões.
A primeira, inteiramente previsivel, anuncia a retirada dos Estados Unidos do acordo nuclear com o Irão, a segunda, já esperada, marcou data para o segundo encontro entre Kim Jong-un e o novo Secretário de Estado norte-americano.
A primeira decisão confirma a determinação de Donald Trump em desmantelar a herança de Barack Obama: depois do Tratado de Paris e da Parceria do Pacífico (TPP), era a vez do Plano de Acção Conjunto (JCPoA), que, no essencial, os Estados Unidos negociaram bilateralmente com o Irão, antes de ser aprovado como um acordo multilateral, incluindo os outros membros permanentes do Conselho de Segurança, assim como a Alemanha.
O Presidente Macron, a chanceler Merkel e a primeira-ministra May empenharam-se a fundo em impedir a decisão americana: a acção conjugada dos representantes do três principais aliados europeus não teve sucesso e a divergência entre os dirigentes ocidentais cria as condições para uma crise séria na Aliança Atlântica.
A decisão dos responsáveis europeus em preservar o acordo multilateral é importante, mas deve ser entendida como uma forma de ganhar tempo para criar condições para um novo acordo entre os Estados Unidos e o Irão, se possível com o envolvimento de outros parceiros regionais, como Israel, a Turquia e a Arábia Saudita.
Os aliados europeus não têm autonomia estratégica para se colocarem numa falsa posição como mediadores entre Teerão e Washington e devem reconhecer sobriamente que só são relevantes no Médio Oriente se puderem contar com os Estados Unidos.
A segunda decisão confirma a determinação de Trump em completar um acordo nuclear com a Coreia da Norte, para neutralizar o principal perturbador das relações entre os Estados Unidos e a China, que está tão empenhada como os a diplomacia norte-americana em conter os riscos de proliferação nuclear na Asia do Nordeste.
A parada das cimeiras asiáticas demonstra a importância do próximo encontro entre Trump e Kim.
Nos útlimos dias, os primeiros-ministros da China, do Japão e da Coreia do Sul realizaram uma cimeira tripartida e, sobretudo, o Presidente Xi Jinping e Kim reuniram-se uma segunda vez em Dalian.
A imprensa chinesa reproduz uma declaração de Kim nessa cimeira informal em que o dirigente norte-coreano afirma que se as “partes relevantes” deixarem de ameaçar a segurança norte-coreana, “não há nenhuma razão para a República Popular Democrática da Coreia ser um Estado nuclear”.
Essa declaração, cujo contexto sublinha implicitamente a necessidade de um “chapéu-de-chuva” nuclear do irmão mais velho chinês para garantir a segurança norte-coreana, foi feita no mesmo dia em que Trump anuncia a decisão de retirar os Estados Unidos do acordo nuclear iraniano.
A decisão norte-americana é uma dupla decisão e, para a diplomacia dos Estados Unidos, os acordos nucleares com o Irão e a Coreia do Norte e, aparentemente, os dois processos negociais, passaram a ser inseparáveis.
Trump não quer repetir com Kim o mau precedente de um acordo demasiado imperfeito - o acordo iraniano não incluia os misseis com capacidade nuclear, que os norte-americanos consideram essenciais no caso norte-coreano - e tem a pretensão de poder negociar um acordo melhor com a Coreia do Norte - sobretudo se Washington puder contar com Pequim em Pyongyang.
Esse acordo pode servir, por sua vez, como um bom precedente para um novo acordo com o Irão.
Em ambos os casos, a nova estratégia norte-americana deixou de ter como objectivo pôr em causa os regimes políticos da Coreia do Norte e do Irão: um acordo com Kim consolida o seu regime comunista e serve para demonstrar que Washington desistiu de minar a teocracia xiita, o que é um incentivo para uma nova negociação.
Os mais cépticos consideram que os Estados Unidos de Trump não têm qualquer estratégia, mas podem não ter razão: os generais que tutelam as politicas externas norte-americanas costumam ter estratégias, boas ou más.
Em todo o caso, como ensina Spinoza, para fazer a paz é preciso existirem duas partes. Ora, tanto a Coreia do Norte, como o Irão, têm estratégias próprias e partem de posições mais fortes do que no passado.
A Coreia do Norte demonstrou ter uma capacidade nuclear militar autónoma e só depois aceitou sentar-se à mesa para negociar bilateralmente com os Estados Unidos, aparentemente sem antes ter obtido o nihil obstat da China.
O Irão aceitou congelar o seu programa nuclear militar, mas ganhou uma projecção sem precedentes no Iraque, no Líbano e na Síria, onde o crescendo da sua presença militar representa uma alteração significativa da balança regional: a tentação de jogar numa escalada da guerra no Médio Oriente pode ser irresistível para a linha revolucionária islâmica.
Nada está adquirido e tudo, ou quase tudo, está por fazer. Karl Marx dizia que os homens fazem a sua história, mas não sabem que história fazem: não é impossivel que, além de o celebrarem, ainda o leiam nas margens asiáticas.
Instituto Português de Relações Internacionais (IPRI-UNL)
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