ANÁLISE
Teresa de Sousa
10 de Maio de 2018, 6:48
A decisão de Donald Trump, que os líderes europeus se esforçaram tanto por evitar, é talvez o acontecimento que mais se arrisca a afectar o que resta de segurança e de estabilidade na cena internacional.
1. A pergunta que se põe hoje é simples: poderá a Europa “salvar” o acordo com o Irão?
Os principais negociadores europeus do acordo nuclear de 2015 dizem que vão tentar.
O governo iraniano acrescenta que, por agora, sim.
O regime está a capitalizar politicamente o aventureirismo americano, tentando mostrar um comportamento moderado e rejeitando as acusações da Casa Branca e de Israel sobre o seu alegado programa nuclear secreto.
Até quando?
Nesta quarta-feira, o guia supremo do regime, Khamenei, anunciou que não confiava “nesses três países”- Alemanha, França e reino Unido.
A decisão de Donald Trump, que os líderes europeus se esforçaram tanto por evitar, é talvez o acontecimento que mais se arrisca a afectar o que resta de segurança e de estabilidade na cena internacional.
Vai desencadear um conjunto de reacções em cadeia que podem levar o Médio Oriente a um conflito que afectará o mundo inteiro e, em primeiro lugar, a própria Europa.
Obrigará os aliados dos EUA a fazer escolhas muito difíceis.
Permitirá à Rússia tirar vantagens da desordem, como fez na Síria.
Obrigará a China, já em vias de fazer algumas correcções da sua política externa, a refazer os cálculos para a sua “ascensão” ao estatuto de grande potência de influência mundial – o objectivo da nova liderança de Xi.
2. Comecemos pelos europeus.
Citado pela Reuters, um diplomata iraniano que esteve envolvido nas negociações do acordo, dizia que, perante uma escolha desta natureza, a Europa “acabaria por ficar do lado dos Estados Unidos”.
É uma manifestação de realismo.
Os aliados europeus continuam a depender dos Estados Unidos para garantir a sua segurança, num mundo cada vez mais inseguro.
Trump pode colocá-los perante uma escolha vital.
Não há alternativa à América num mundo em que o poder está cada vez mais nas mãos de grandes potências rivais, perante o qual a Europa não está em condições de agir como um poder autónomo.
Continua a ser uma grande potência civil.
Não está à beira de se transformar numa grande potência mundial, dispensando os EUA. Aliás, basta pensar duas vezes para provar que é assim.
Os europeus não conseguem entender-se sobre como deve funcionar a zona euro e digladiam-se furiosamente em torno de um orçamento plurianual, só porque acrescenta uma décima (0,1%) ao já minguado orçamento de 1% do seu Rendimento Nacional Bruto (que representa cerca de 20% da riqueza do globo).
Estão, por maioria de razões, ainda mais longe de se entenderem sobre o que querem ser no futuro, quando se fala de segurança e defesa.
Mesmo quando decidem criar uma “cooperação estruturada permanente” para a Defesa (o nome é, só por si, significativo da dificuldade de encarar a realidade), as divergências entre Berlim e Paris mais a saída do Reino Unido reduzem drasticamente a sua ambição, em flagrante contraste com a velocidade dos acontecimentos mundiais a que assistimos.
A chanceler alemã aproveitou nesta quarta-feira o Irão para insistir em que o seu país tem de aumentar o orçamento da Defesa para os 2% fixados pela NATO (até 2024), embora o seu ministro das Finanças, o social-democrata Olaf Scholz, não tenha levado isso em conta na apresentação tardia do Orçamento federal.
Merkel também lembrou que a manutenção do acordo com o Irão não deve impedir a Europa de participar na negociação de um novo acordo, que contenha as exigências americanas e abranja um conjunto mais vasto de actores regionais.
Macron tem a mesma posição e Theresa May também.
3. Há ainda a parte económica.
Com o acordo de 2015, o levantamento das sanções abriu caminho ao investimento europeu no Irão e à importação de gás.
Mas as empresas europeias estarão atentas às consequências da imposição de novas sanções por Washington, que podem afectar os seus negócios nos EUA.
Nem é preciso chegar a tanto – o clima de confiança criado pelo acordo está definitivamente posto em causa.
A incerteza regressa.
Dieter Kemp, director da associação industrial alemã BDI, reconhece que havia uma “alta expectativa” para as empresas alemãs no mercado iraniano, com o levantamento das sanções”.
“Estas expectativas estão hoje muito mais nubladas”.
“Quem conseguiu esquecer o espectáculo dado pelo ministro da Economia, Sigmar Gabriel (social-democrata), aterrando em Teerão com uma delegação de empresários, quando a tinta do acordo ainda nem sequer tinha secado” lembra o Politico.
O francês Les Echos descrevia nesta quarta-feira idêntica corrida do investimento francês, envolvendo empresas tão importantes como a Renault, PSA, Total ou Airbus.
Os americanos foram mais lentos.
Segundo a BBC, John Bolton terá já avisado as empresas europeias [e americanas] que fazem negócio com o Irão, que terão seis meses para deixar de fazê-lo, ou enfrentam sanções dos EUA.
Em 2016, as exortações de energia para a Europa aumentaram 344%, para 5,5 mil milhões de euros.
No mesmo ano, o investimento externo no Irão subiu para 20 mil milhões.
Há outra consequência económica da decisão americana: o preço do petróleo tenderá a subir, o que não é uma boa notícia para os europeus, altamente dependentes da importação de energia.
4. Falta ainda uma terceira dimensão sobre as eventuais consequências da decisão americana.
Para o Irão, não faz grande sentido um acordo sobre o nuclear se não tiver os Estados Unidos a bordo.
Os europeus sabem isso.
Mais uma vez, por uma razão simples: o acordo dava garantias ao regime iraniano de que os EUA tinham abandonado a estratégia de “regime change”, na qual George W. Bush apostou, defendendo para o Irão a tese do quanto pior, melhor.
Sem os EUA, essa garantia deixa de existir.
Ao contrário de Bush, Trump não quer gastar tempo nem dinheiro com a segurança no Médio Oriente.
Mas apoiará os regimes que desafiam a influência do Irão e já tomou partido pela Arábia Saudita na grande fractura que divide o mundo islâmico entre sunitas e xiitas.
Resta lembrar que, do actual governo de Israel, tudo é possível.
5. A aposta do Presidente americano é agora na Coreia do Norte, com cujo regime quer negociar um acordo que sirva os interesses americanos, em oposição ao que Obama negociou com o Irão.
Tal como Teerão, Pyongyang quer ter os EUA como interlocutor directo, porque são eles que podem dar ao regime megalómano de Kim Jong-un as melhores garantias de sobrevivência.
Negociar directamente com a América é também mostrar ao seu único protector, a China, que não está assim tão dependente dele.
Qual pode ser o impacto da decisão de Trump para o Irão em Pyongyang?
Ver-se-á em breve.
Tal como na Europa, a segurança dos aliados na Ásia-Pacífico – e, em primeiro lugar, o Japão – também depende das garantias americanas.
Tóquio vê com bons olhos a abertura de negociações com a Coreia do Norte, embora não queira ser marginalizado.
Shinzo Abe, de cada vez que Trump toma uma decisão que possa eventualmente alterar o actual equilíbrio de poder na região, voa até Nova Iorque ou Miami, para se encontrar com o Presidente Trump, nem que seja num campo de golfe.
O Japão, ao contrário da Europa, tem limites estritos à sua capacidade militar, reduzindo-a a um mero instrumento defensivo.
O dilema mantém-se há anos: virão os EUA em seu socorro, em caso de ameaça directa à sua segurança?
6. Regressando à Europa, um diplomata francês citado pela Reuters dizia mais ou menos o mesmo que o diplomata iraniano.
“As empresas acabarão por ser forçadas a escolher entre os seus interesses económicos no Irão e os actuais e potenciais interesses nos EUA”.
Concluía: “Geralmente , esta decisão é rapidamente tomada a favor dos EUA”.
teresadesousa@público.pt
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