David Cameron não resistiu à derrota no referendo britânico à UE. Boris Johnson, o senhor que se pode seguir, diz que “nada vai mudar no curto prazo”, mas líderes europeus discordam
O sismo, sentido através da Europa, aconteceu pouco antes das 5:00.
A contagem de votos do referendo não deixava margem para dúvidas: 43 anos depois da adesão, a maioria dos eleitores britânicos decidiu que o Reino Unido deve sair da União Europeia, naquele que é o maior golpe infligido ao projecto europeu nascido das cinzas da II Guerra Mundial.
O divórcio demorará anos a ser consumado, mas o referendo começou já a mudar a realidade política no país e na Europa e no horizonte pairam agora, com maior intensidade, ameaças de desagregação.
A intensidade do abalo mediu-se nas declarações de “choque”, “desilusão” e “tristeza” que rapidamente se ouviram em todas as capitais europeias, fazendo antever que os líderes europeus podem não estar (ainda) em sintonia, mas sentem que têm de dar ao Reino Unido uma resposta que desincentive outros países a seguir-lhe o caminho.
Mas foi nas praças europeias que os sismógrafos registaram maior oscilação – quando as televisões deram o resultado como certo, a libra tinha já atingido o seu valor mais baixo face ao dólar desde 1985, sofrendo a maior queda de que há registo.
A cotação dos principais bancos caiu também a pique, num dia de transacções que começou com pânico e terminou com grandes perdas.
E não foi preciso esperar muito para confirmar uma das poucas certezas do dia – a de que Cameron não sobreviveria à pesada derrota que sofreu naquela que disse ser a luta da sua vida.
Ao início da manhã, numa declaração à porta de Downing Street, o líder conservador anunciou a sua demissão – que não é imediata, mas que ele próprio espera ver concretizada antes da próxima convenção do partido, em Outubro.
“O povo britânico decidiu de forma muito clara que quer seguir um caminho diferente e para isso o país precisa de uma nova liderança”, afirmou, com a voz incapaz de esconder a emoção”.
“Farei tudo o que puder enquanto primeiro-ministro para manter este navio estável nas próximas semanas e nos próximos meses, mas não creio que seria correcto tentar ser o comandante que conduz o nosso país até ao próximo destino.”
Sem pressa
O que Bruxelas e todas as capitais europeias queriam saber era se Cameron iria cumprir a promessa de accionar o quanto antes o artigo 50 do Tratado de Lisboa.
Só depois de Londres invocar esta cláusula até agora intocada serão desencadeadas as negociações formais para desatar os nós apertados que ligam o Reino Unido a Bruxelas e que, em teoria, devem estar concluídas no prazo de dois anos.
À UE interessa o mínimo de incerteza.
Mas o líder conservador é, antes de mais, um pragmático e reconheceu que, desautorizado pelo voto de 17 milhões de britânicos (52% dos votos expressos) não podia ser ele a decidir sequer os moldes em que o difícil processo vai arrancar.
“Deve ser o próximo primeiro-ministro a tomar essa decisão”, explicou.
O adiamento não agradou à maioria dos líderes europeus, mas em Londres a decisão é vista como inevitável – por um lado, dá à economia algum tempo para absorver o choque inicial da decisão; por outro, é agora evidente que os que fizeram campanha pelo “Brexit” não têm ainda um plano para concretizar a saída.
Na primeira comunicação oficial ao país, o antigo mayor de Londres, tido como o grande favorito à sucessão de Cameron, garantiu que “não há necessidade de apressar” os preparativos para a saída.
Em tom solene, quase sombrio, Johnson tentou ao máximo tranquilizar aqueles que na manhã desta sexta-feira acordaram em choque para a nova realidade, assegurando que “nada vai mudar no curto prazo”.
Aos investidores disse que o Reino Unido “vai continuar a ser uma grande potência europeia”, que terá na política externa “uma voz equivalente à da quinta maior economia do mundo”.
Aos jovens, assegurou que a saída da UE não lhes fechará as portas da Europa, e aos milhões de cidadãos comunitários que vivem no país fez saber que o Reino Unido “não vai virar as costas” ao continente ao qual pertence.
Fracturas e tensão
Mas a vitória do “Brexit” não foi só de Boris.
Foi também (ou sobretudo) de Nigel Farage, o líder do partido antieuropeu UKIP, que empunhou sem remorso a bandeira da imigração para mobilizar os eleitores descontentes, os excluídos pela globalização e maltratados pelas convulsões da economia.
“A UE está a falhar, a UE está a morrer”, declarou em tom triunfante, manhã cedo, frente ao Palácio de Westminster no qual tenta há anos entrar e onde o UKIP continua a ter apenas um deputado.
Selada a saída pela qual luta há mais de 20 anos, o líder populista não poupou na retórica – “Derrubámos o primeiro tijolo do muro, espero que este seja um primeiro passo para uma Europa de nações soberanas”.
E, de dedo apontado ao Parlamento, avisou que o passo lento preferido por Boris e os seus aliados não é suficiente para o UKIP: “As pessoas aqui não percebem.
São demasiado ricas, não percebem o que a imigração maciça que resulta da UE fez aos salários das pessoas, à capacidade delas para terem acesso a um médico ou porem os filhos nas escolas”.
No Partido Conservador, a saída de cena de Cameron – 11 anos depois de ter chegado à liderança dos tories com o desafio de enterrar a “velha obsessão europeia” – escancara a porta de Downing Street aos eurocépticos, a facção que depois de décadas em minoria sai coroada deste referendo.
Johnson parte na frente, mas na corrida poderá também estar a actual ministra da Administração Interna, Theresa May, que apesar de se ter mantido ao lado de Cameron no referendo, observou durante toda a campanha um silêncio quase religioso.
Fica por perceber o que fará a facção pró-europeia do partido, ainda maioritária no Governo, e como conseguirá o novo líder unir um partido que travou a campanha em clima de guerra civil.
Não são, no entanto, só os tories que têm de reparar pontes destruídas.
O referendo provou o que as últimas legislativas já tinham mostrado – o UKIP está a canibalizar o descontentamento dos eleitores nas regiões do Norte que foram durante décadas zonas seguras dos trabalhistas.
Nestas regiões, dizem os analistas, o que mais pesa é o sentimento anti-imigração e a descrença na classe política.
Mas para a oposição interna, que há muito duvida da capacidade de Jeremy Corbyn para ganhar eleições, o líder do partido chegou demasiado tarde à campanha e foi incapaz de defender a importância da UE junto de um eleitorado que teria sido decisivo para evitar o “Brexit”.
“Um líder tem de ser alguém que seja capaz de comunicar uma mensagem e inspirar confiança nessa mensagem.
E Jeremy Corbyn falhou nas duas frentes”, disse à Sky News a deputada Ann Coffey, co-autora da primeira moção de desconfiança que o líder trabalhista enfrenta desde que foi eleito, há menos de um ano.
O documento deverá ser discutido numa reunião do grupo parlamentar no início da próxima semana e, se vier a ser aprovado pelos deputados, desencadeará uma eleição interna. Corbyn, que nunca teve do seu lado a maioria da bancada parlamentar poderá sempre contar com o apoio do grosso dos militantes e dos sindicatos para ser reeleito.
Mas a instabilidade política desencadeada por este referendo não se resume a Londres, tanto mais que a votação mostrou fortes assimetrias regionais, com a capital, a Escócia e a Irlanda do Norte a votarem em sentido contrário ao da restante Inglaterra e País de Gales.
Ainda as palavras com que Boris Johnson quis tranquilizar os britânicos estavam frescas, quando a líder do governo autónomo escocês veio afirmar que o actual arranjo constitucional pode ser insustentável.
A Escócia considera “democraticamente inaceitável” ser arrastada para fora da UE pelo voto inglês, afirmou Nicola Sturgeon, afirmando que “um [novo] referendo à independência é agora altamente provável”.
Já antes, o Sinn Féin, o maior partido republicano da Irlanda do Norte, avisara que a saída da UE “intensifica o argumento a favor da unificação da Irlanda” – uma alusão que promete gerar calafrios juntos dos partidos unionistas com que partilha o governo em Belfast.
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